Texto escrito por mim em 2004, em seguida a reeleição de George W. Bush para a presidência
dos Estados Unidos, e publicado pelo O Globo em 15-Nov-2004. Escrevi esse texto como um eco à excelente crônica escrita
por Arnaldo Jabor – Eu Já Vi o Medo da
América Profunda (O Globo – Segundo Caderno – 9-Nov-04), que, como a
maioria dos textos do Jabor, foi profundo, oportuno e literalmente impecável.
Hoje sou eu quem mora nos EUA, isso já vão mais de 17
anos, quase 15, como imigrante. Nascido e criado nas praias douradas do Rio,
com água salgada nas veias, sol na cabeça e lindas morenas nos olhos. Filho de
classe média baixa, em plena ditadura militar do final dos 60 e 70, cresci politizado
e sensibilizado pela injustiça e problemas sociais. Por força do trabalho,
comecei a viajar para o exterior em meados dos 80, com passagens pela Europa,
Asia e varias cidades americanas. Em 87 me mudei para San Francisco, a trabalho
para uma grande empresa Brasileira, e em 89, para Los Angeles.
Em 90, com o nascimento da minha filha e um
pressentimento sombrio sobre o advento do governo Fernando Collor no Brasil, resolvi
aceitar um convite para me radicar definitivamente nos Estados Unidos, viver e
trabalhar na California. Nos 11 anos que se seguiram vivi então uma fantasia de
menino, a de surfar os “breaks” de Malibu e San Onofre, como protagonizado nas
telas da minha juventude por Anette Funicello e Frank Avalone. Conheci de perto
a “beach culture” americana: do surf, do volley de praia, da “muscle beach”, do
roller-blade, do skateboarding. Era uma
América de uma juventude dourada, sarada e bonita, em muito parecida com a do
meu querido Rio de Janeiro. Era uma América liberal, cosmopolita, formada por inglêses,
autralianos, asiáticos, árabes e latinoamericanos. Isso tudo regado a temporadas
regulares do Tom, do Ivan, do Hermeto e da Gal no Hollywood Ball.
Mas como não tem felicidade que dure para sempre nem
tristeza que nunca se acabe, em Dezembro de 99 a firma onde trabalhava fechou.
Depois de esgotar todas as minhas alternativas, em final de 2001 vim parar,
entre todos os lugares, no Texas. Bastião do protestantismo mais intolerante,
incruado e racista dos Estados Unidos. Berço e raiz da Ku-Klux-Klan, do
escravagismo, da pena de morte e, como não poderia ser diferente, da dinastia
Bush. Aqui se encontra uma igreja em cada esquina e uma arma em cada carro. Adesivos
colados nos carros com dizeres do tipo “não mexa com o Texas”, “eu apóio as
nossas tropas” ou ainda “se voar, eu mato” (em alusão a um clube de caça), são
lembranças constantes da truculência e boçalidades Texanas.
Assim como o Jabor, eu também tive minha parcela de
constrangimento quando, por exemplo, fui confrontado por colegas de trabalho
com pegruntas do tipo: “O seu presidente também é comunista como o Hugo Chaves?”,
“Porque o Brasil votou contra os EUA na ultima reunião do WTO?”, “Como a
Petrobras pode assinar um acordo de exploração com Cuba?”, ou ainda “Como a
polícia brasileira teve a audácia de prender o piloto da American Airlines?”
Vivendo aqui, conheci o lado ainda mais podre da
cultura americana. O lado das organizações “missionárias” pagas por companhias
de petróleo para desalojar populações indígenas na América Latina, ou ainda por
multinacionais para introduzir sementes transgênicas no Brasil, “por baixo dos
panos” da WTO. Ouvi, atônito, à arrogância do locutor da rádio pública NPR numa
manhã, descrevendo como satélites espiões americanos fotografavam as plantações
de laranja e soja, e as culturas de gado no Brasil, para fornecer informações estratégicas
a fazendeiros americanos.
É uma América decadente e facista. Onde há pouco mais
de dez anos ainda se arrastavam negros até a morte, amarrados com correntes a
para-choques de pickups dirigidas por adolescentes brancos e protestantes. Uma
América onde o presidente declara no discurso de abertura da “Convenção
Nacional dos Publicadores Evangélicos” que a grande ameaça aos EUA está nos
povos que acreditam em outros deuses que não o “deus” americano. Uma América que trancafia em Guantanamo Bay e
outras dezenas de campos de tortura clandestinos espalhados pelo mundo,
milhares de infelizes de pele morena e religiões que não o protestantismo
branco americano. Essa América “religiosa”, fascista e ultra radical, que na
defesa de seus “altos valores morais”, massacra, corrompe, estupra e destrói 50
anos de evolução, de democracia e de conquistas sociais em todo o mundo.